A confiança ensina e ensina-nos
Cresci e passei a minha adolescência em Almada. Entrei nela num bairro onde então vivia, uma espécie de aldeia onde todos se conheciam, onde se ia à mercearia, onde havia conta e onde se pedia à Augusta, em tom de gozo, «Vaginol» em vez de Vasenol, quando éramos adolescentes. Ninguém lá chegava sem que todos soubessem que já se tinha chegado da escola, em que eu sabia que a minha mãe vinha a subir a ladeira à entrada do nosso bairro, sem que a conseguisse ver da janela de casa.
Para mim era o melhor sítio do mundo. Estava sempre na rua, ou pelo menos queria estar, e descobri esse gosto já tarde, detida pela timidez, mas finalmente impulsionada pela necessidade adolescente de ter mais amigos. Os meus pais acharam que não era o melhor dos sítios e mudámo-nos. A verdade é que hoje sei que não era e sair foi importante. A segunda parte foi vivida noutra Almada, com outros adolescentes, maioritariamente rapazes, com fronteiras maiores e onde Lisboa já entrava na equação aos fins-de-semana e nalguns dias das férias. Onde ser skater ou conhecer quem andasse de skate, vestir roupas largas, mesmo caras, e ténis da Etnies era mesmo importante. Onde sair à noite e voltar tarde era essencial para a vida e onde era preciso constantemente saber escolher, experimentar e não continuar. Foi uma corda bamba, hoje sei que sim. Mas percorri-a, ainda que com desequilíbrios, e cheguei ao fim sem grandes consequências. Pelo menos, dentro dos riscos aparentes.
Hoje tenho uma caixa daquelas de cartão, dos meus antigos ténis Etnies, cheia de pensamentos escritos, desenhos, colagens, relatos que documentam esta viagem, grande e tão diversa, na corda bamba. E hoje sei que a possibilidade de escrever o que pensava, desabafar as emoções, poder falar comigo própria enquanto chorava e ouvia música, quando chegava de madrugada e não tinha sono, quando vivi as primeiras experiências, boas ou péssimas, foi fundamental para a viagem de «adolescer» ter corrido pelo melhor e, apesar de uns arranhões, ter crescido bem. E isto tem na base valores fundamentais para a construção da identidade e para sermos adultos: respeito pela intimidade e pela privacidade. Lá em casa guardava os diários, a minha caixa de papéis soltos, as minhas revistas Bravo com «fotografias picantes» numa espécie de baús, que ficavam ao longo da minha cama. Por certo não de fácil acesso, talvez por isso os punha lá, quase como se inconscientemente sentisse e soubesse que eram coisas privadas, proibidas e, talvez não por acaso, esta mobília tivesse essa particularidade, ou talvez não, talvez seja só uma interpretação ou ganho de sentido após o acontecimento. Mas o certo é que estive sempre confiante, com razão ou não, de que ninguém lá mexeu. Os meus pais não mexiam no baú, não revolviam a minha mochila nem naquilo que era meu. E eu sabia disso. Eles disseram-mo alguma vez? Não. Mas eu sabia. E confiava. Sempre confiei. E hoje, ler o que escrevi, ri e recordei levou-me a sítios e experiências fantásticas, mas também me choquei e assustei com algumas coisas que escrevi. Hoje sei, porque estudo e trabalho com a adolescência, muitas delas hiperbolizadas e fantasiadas, com a necessidade do desabafo, da materialização, da forma exagerada como as emoções são vivenciadas.
Os meus pais passaram-me esta enorme possibilidade, uma possibilidade para a vida: o respeito pela privacidade e a intimidade do outro. Lá em casa havia gavetas que eram deles, podia-se fechar portas, falava-se ao telefone sem que os outros ouvissem e a casa de banho era de cada um enquanto lá se estava. Não se falava de tudo e mais alguma coisa, na verdade. Não se abordaram drogas, sexo e rock’n’roll, não era esse o género. Mas deram-me o direito à minha privacidade. Um valor praticado que me deu o direito à privacidade e à intimidade, o respeito pelos meus direitos de pessoa individual, mesmo se adolescente, o direito à não partilha de todos os meus pensamentos, que partiu de os meus pais confiarem neles e depois na filha. Hoje isso é-me muito útil como adulta, de mim para mim, de mim para os outros e consequentemente, sem sabermos como, mas é quase matemático, dos outros para nós, quase como se soubéssemos preservar uma intimidade e um espaço nossos, que por isso o outro respeita também, sem questionar.
Não faço ideia se alguma vez abriram aquele baú, nem nunca me questionei sobre isso, nem quero questionar. Para mim eles não abriram e isso é precioso.
Texto incluído no capítulo 13. Intimidade e Espaço Pessoal - O seu filho é uma pessoa no meu novo livro para pais de adolescentes "Adolescência, os anos da mudança" publicado em Setembro de 2016.
Conheça melhor o livro em: http://www.psicologadosmiudos.com/publicacoes
Fonte imagem: http://www.elo7.com.br/categoria/papel-e-cia/diario